em memória a todos os que se esquecem
pra que serve a memória?
apenas para nos infernizar. serve pra jogar na sua cara que você mudou de ideia sem perceber. que você antes dizia uma coisa, mas passou a dizer outra quando a vítima passou a ser você. serve pra você se desculpar pelas coisas que esqueceu e não devia ter esquecido. memória? pra quê?
– oi, meu bem, como foi seu dia? – pergunta doce o apaixonado que não percebe o olhar algo gelado da mulher
– bom – responde secamente
aí o cara usa seu radar anti-problemas femininos e detecta que ele deve insistir no assunto
– aconteceu alguma coisa, meu bem?
– nada – o tom já fica discretamente mais intenso. o suficiente para o homem perceber: fiz merda
– esqueci de algo? – pergunta ao mesmo tempo em que tenta uma aproximação física, tipo tocar o ombro e dar um beijo no cangote.
quando a mulher meio que rejeita sem rejeitar completamente, percebe-se: ela está puta da vida.
– conta pra mim – o cara já diz em tom de voz baixinho, já se desculpando sem nem saber se é com ele.
pode ser algo besta – para os padrões masculinos – algo estético, um corte de cabelo que você não percebeu, ou ela tingiu o cabelo, ficou morena – porque se ficasse loira você teria percebido antes de dizer oi meu bem…
– você não lembra, né?
putz, quando ela diz isso é porque é maior do que um corte de cabelo, vestido novo ou coisa assim. pode preparar as desculpas, amigo. será que prometeu pagar uma conta e não pagou. prometeu ligar e não ligou, pra combinar algo e não combinou. prometeu algo para alguém? o que, meu deus? por que não se lembra???
porque a memória é uma merda. só serve pra te colocar em situações constrangedoras. seja porque você não se lembra, seja porque você se lembra.
porque há coisas que deveríamos esquecer para sempre.
eu por exemplo não consigo esquecer da já que rô ris sendo perdoada pela câmara. e não consigo esquecer das pessoas pedindo nas ruas punição para os corruptos mas nenhuma delas pedindo o mesmo para os corruptores… aliás, quem são eles? eu não consigo esquecer que há 12 anos a eletropaulo metropolitana – que cuidava dos serviços de energia elétrica em sp – foi privatizada. era a panaceia dos
anti-estado-tomando-conta-de-tudo. a solução para todos os problemas. ok. quando pedi – recentemente – pra que se reativasse a luz do apartamento que comprei – o prazo é de até dois dias para que isso seja feito – não fizeram. quando perguntei o motivo, me foi dito que eles vieram ao prédio mas não puderam fazer o serviço porque o síndico marcos não estava e só ele liberaria a chave para a reativação da energia no apartamento…
fiquei abismado porque o síndico não se chama marcos, não existe uma chave para isso – basta empurrar a porta, tirar o lacre, ligar a chave de energia, fechar a porta e tchau. além do mais, os porteiros marcam no livro todos os que aparecem no prédio. eles não vieram. ponto.
por que eles mentiriam descaradamente dizendo que vieram? eis o mistério!!! não era mais fácil dizer que o carro quebrou?
por isso eu digo: memória não serve pra nada. se não fosse a memória, seria mais fácil mentir. inventa aí qualquer coisa que não tem problema. o otário não vai lembrar o nome do síndico, não vai lembrar de nada.
bom, o otário ligou de novo, reagendou de novo. o otário reclamou – porque tem memória – e eles vieram e reativaram. do jeito que era pra ser. levaram 12 segundos pra fazer isso. essa é a AES Eletropaulo privatizada.
memória é pra isso. tua mulher te pede 327 coisas pra fazer num dia e você faz todas. só esquece uma. ela vai te agradecer pelas 326 que você realizou com perfeição? não, claro. vai te jantar porque esqueceu a uma coisa.
– putz, amor, esqueci, foi uma correria, perdi o ônibus, o celular tava sem bateria, o cachorro correu atrás de mim, justo hoje tive um monte de coisas no trabalho…
cara, esquece. você cagou. peça desculpas, recolha-se em sua insignificância e tente evoluir num patamar dalai lama. porque só um ser iluminado pode chegar perto da perfeição.
você nunca vai chegar. conviva com isso.
A memória, o senso crítico, a seriedade, a bobice, a paixão. Nada serve mais pra nada, tudo coisa do passado. Agora, o que é bom é pastel sem queijo, o sanduíche de pão integral com alface, ser meio engraçado e ter aparência de sério; sorrir ao desrespeito para se chegar aonde quer – e pagam melhor -, não encrencar porque isso é chato, não educar porque isso é besta, não exigir porque é grosseiro. E é melhor não esquecer da data do primeiro beijo! porque lembrar o ano e as causas da morte do Vladimir Herzog não rendem admiração alguma (mas infelizmente, caro Fabio, isso não é novo como os outros fenômenos; me parece que isso sempre foi assim mesmo…).
Andre Argolo/.
genial, como sempre